Não acredito muito nisso de alma ou em qualquer coisa
sobrenatural, mas gostei da possibilidade de A bússola de ouro: nesse livro as almas de todos são chamadas
dimons, e assumem formas de animais – mutantes na infância, quando ainda não se
sabe quem é, e fixas na vida adulta, quando teoricamente esta fase já passou.
Seria bem útil ter um dimon: me ajudaria, certamente, a
saber mais sobre minha personalidade – e conseqüentemente, sobre minhas
fraquezas. Lyra, como criança, ainda não tem esse privilégio, mas não liga
muito: sua vida é relativamente plena e feliz na Faculdade Jordan, onde foi
criada pelos catedráticos depois da morte de seus pais. Ela está lá graças ao
tio Asriel, que trabalha na universidade, mas não o vê muito: a vida do
inteligente homem é cheia de explorações, negociações e mistérios, pelos quais
sua sobrinha alimenta grande curiosidade e anseio de participar.
Mas em Oxford e em todo lugar, crianças começam a
desaparecer. Lyra, desconfiada, começa a “investigar”, sobretudo pela suspeita
de que tais desaparecimentos tem algo a ver com uma estranha conversa que escutou
escondida meses antes. Mas como uma boa criança que é, acaba não tendo foco o
suficiente para prosseguir. Quando seu amigo e companheiro de todas as horas,
Roger, desaparece, a coisa é bem diferente: fica inevitável para a garotinha de
alma aventureira não se envolver.
Não torço o meu nariz para livros complexos, mas eles têm de
ser muito bem executados – o que é o caso de A bússola de ouro. É um livro steampunk por excelência, misturando
os costumes de várias épocas no passado com tecnologia estranhamente avançada –
quando digo estranhamente digo algo atemporal, mecânico e que dificilmente
ficará obsoleto.
Contudo, se eu fosse
escolher um gênero para classificar A
bússola de ouro, escolheria fantasia: além dos dimons, feiticeiras e clãs
de “ursos de armadura” são encarados com naturalidade, resultando em uma
mistura bem inusitada de ciência e religião. Se você assistiu ao filme com
Nicole Kidman, esqueça: nem 10% do livro é passado ali. Faltam explicações e
magia, coisas nas quais o autor do livro investe pesado.
Como já devo ter falado aqui, creio que crianças espertas
são protagonistas muito melhores e fáceis de se gostar do que adolescentes de
qualquer espécie – pode soar estranho para uma leitora de YA, mas é verdade.
Alguns autores, porém, relutam em colocar grandes defeitos em seus personagens
com menos de doze anos (como se pequeninos fossem intocáveis e não pudessem ser
extremamente desagradáveis) o que não acontece com A bússola de ouro: Lyra é sim inteligente, esperta e corajosa – mas
também impulsiva, mandona e desprovida de imaginação. Essa última característica
foi a única que o autor explicitou ao invés de insinuar através das ações:
segundo ele, caso Lyra possuísse imaginação, ela não teria embarcado naquela
aventura. Afinal, aqueles que a possuem logo vem com milhares e milhares de
razões porque a tal empreitada poderia dar errado.
Isso nunca havia passado pela minha cabeça, mas é a mais
pura verdade. Considero-me do grupo “com imaginação”, e mal penso em fazer algo
e meu cérebro já vem, quase que involuntariamente, com centenas de contratempos
possíveis. Quase sempre não é exatamente um defeito, já que não deixo de tentar
por isso; mas talvez possa vir a ser um dia.
Os dez milhões de leitores da trilogia Fronteiras do Universo são (ao menos por A bússola de ouro) completamente justificáveis: eis um dos
melhores livros de fantasia que já li.