Eu não tinha saudades quando eu era pequena e minhas
felicidades cotidianas e familiares, porque sei que poderia voltar àquilo
quando bem quisesse. O meu universo se ampliou, com o pequeno ônus de saber que
em alguns dos rios pelos quais passeis nunca poderei voltar – ao menos não da
mesma maneira.
No meu caso, isso é, quase sempre, algo suportável e as
vezes até bom. Mas quando só se possui o passado e nada mais? Quando a saudade
é tão grande que se transforma em uma denúncia óbvia da falta de futuro a se ansiar
e da impossibilidade de prazer (por menor que ele seja) no cotidiano? Não estou
falando de algum relato da aproximação da morte, e sim de Offred, uma aia na
República de Gilead.
Gilead substituiu os Estados Unidos no mapa depois de um
curioso golpe de estado, iniciando uma ditadura religiosa cuja origem não faz
muito sentido em época de globalização, mas se mostra completamente possível
nos anos 80 onde a Internet não habitava o nosso cotidiano e BitCoins eram só
mais um fruto da imaginação de escritores de ficção científica. A suposta
motivação para o tal golpe: a falta de fertilidade da maior parte das mulheres,
justificado pelo novo governo como ira divina pela “libertinagem” que tomara
conta do país após a revolução sexual.
Lembra Children of men/Filhos da esperança? Sim, mas só na premissa – a completa submissão
feminina aqui é a que ocupa mais espaço. As mulheres perdem todo o seu direito
de propriedade e de trabalho e agora se dividem em algumas categorias como as
Marthas (as empregadas domésticas), as Aunts (“professoras” de Aias) e as
Unwomen, rebeldes, solteiras e lésbicas sem ovários viáveis que são condenadas
a trabalho escravo em zonas não metropolitanas da nova potência.
Mas em O conto da aia
são duas as “categorias” de mulheres de Gilead que ocupam posto de destaque: a
Esposa e a Aia. A primeira ganha o comando de uma casa e a função única de
cuidar de quaisquer filhos que por ventura nasçam; a segunda, de engravidar desses
tais filhos. A vida da Aia depende disso, na verdade: caso ela não consiga
fazê-lo em três ciclos menstruais diferentes em três casas diferentes, ela é
mandada para um campo com as Unwoman. Offred já está em sua terceira tentativa
quando a nossa história começa.
Elas não podem ler sequer uma frase e não há televisão –
nada que possa despertar qualquer pensamento pecaminoso (ou qualquer
pensamento, na verdade). Todas estão sob julgo do Comandante, um homem que
apesar do título militar, não está necessariamente nessa carreira – apenas
ocupa uma posição de poder, ao contrário dos Anjos (soldados comuns) e outros
empregados, cujas funções quase sempre estão relacionadas a luta contra os
infiéis, aqueles de religião diferente a da nunca citada adotada por Gilead.
Aliás, é importante frisar que o livro nunca adota uma postura anti-religiosa,
e sim anti-extremista, contra qualquer coisa ou qualquer um que possa podar as
liberdades individuais. Uma religião cristã só foi a forma mais realista que a
autora achou de concretizar o seu objetivo, considerando o local e forma do
golpe.
De forma muito geral, consigo dividir as distopias em dois
grupos bem claros: aquelas carregadas de ação, que são impossíveis de largar
quando bem escritas (bem no estilo Jogos Vorazes que aparentemente não quer que você tome banho até parar de ler) ou
as mais lentas, com personagens que não querem necessariamente lugar contra o
sistema, e sim se adaptar a ele, prendendo-se as suas poucas memórias felizes
do “antes” como quem se prende a própria vida. E, considerando situações como a
da própria Offred ou de Lena, de Delirium, as lembranças talvez sejam de fato a
própria vida.
O conto da aia
pertence claramente a última categoria, e não há quase ação nenhuma no livro
inteiro – é como se Margaret Atwood (que é, quase que ironicamente, conhecida
por seus viciantes livros de mistério) tivesse jogado o seu maravilhoso
planejamento de mundo, a personalidade e história de sua personagem nas páginas
de O conto da aia, sem se preocupar
com coisinhas que tiram o sono de escritores como “conflito” ou “clímax”.
E isso não é um
defeito.
Não é um defeito porque a linguagem empregada é fantástica,
com a depressão de Offred pela situação em que ela se encontra pulando das
páginas, algo melancólico e extremamente envolvente. Em alguns pontos não
encontramos marcações de diálogos ou avisos de que estamos voltando para o
muito atraente passado da personagem, mas isso é só um auxiliar para estarmos
cada vez mais dentro da consciência da mesma. A vida cotidiana também não
possui clímax ou ponto de virada, e é isso que O conto da aia é: a vida cotidiana de Offred, tanto antes quanto
depois do golpe que tirou a sua liberdade.
O conto da aia foi
escrito no final do século passado, mas é triste constatar que muito dos temas
de gênero presentes nele ainda são fortes e vivos na nossa sociedade. Não falo
só pelo óbvio (a fragilidade de uma suposta liberdade feminina, teoricamente
conquistada com o acesso ao mercado de trabalho) mas coisas “menores”, como a
culpabilização de vítimas de estupro. Margaret Atwood coloca de uma forma
bastante clara (um auditório de Aias em potencial grita para uma colega “foi
culpa dela! Foi culpa dela!” em furor após um relato de abuso) mas os
comentários em site de notícias não nos deixam mentir. Não é um auditório, mas
para as vítimas, as palavras em uma tela são tão altas quanto gritos.
Estou relendo essa resenha pelo que parece ser a milésima
vez (mas deve ser só a décima) e ainda não consigo ficar feliz com ela. Na
verdade, nunca estou feliz com uma resenha quando a posto, mas aqui há um
sentimento especial de incompletude – sinto como se eu não tivesse conseguido
passar (nem de longe) a ideia de o quão próximos estamos de Gilead. O método de
golpe utilizado pelos seus governantes é sim provavelmente inviável como eu
disse acima, mas suas idéias estão bem vivas nos lábios daqueles que acham que
a mulher tem uma função única pré-definida, sem direito à escolha; nos olhares
de descrença daqueles que duvidam de nossa capacidade em funções “masculinas”
como as Forças Armadas e nas menores agressões diárias. Não, eu nunca poderia
pintar com cores tão vívidas como Margaret Atwood esse aviso vermelho sangue
gigantesco, que infelizmente não perdeu a sua atualidade.
Quando falamos de leitura cansativa em geral nos referimos a
um livro mal-escrito ou denso em informações, mas O conto da aia é cansativo por ser denso em sentimentos. Não
recomendado se você passa por um momento ruim – mas só nesse caso.
Parece bem denso e diferente, até por mostrar épocas diferentes femininas. Fiquei bem interessada.
ResponderExcluirboa semana
;*
www.redbehavior.com
Fiquei com muita vontade de ler esse livro!
ResponderExcluirSou feminista, mas adentrei nesse mundo do feminismo recentemente, então ainda não sei muito sobre o movimento, apesar de ler sobre ele o tempo inteiro. Esse livro me ajudaria. Vou atrás dele, hahaha.
Abraço.
Ajuda mesmo! Nada para entender alguns conceitos abstratos como um pesadelo vivo ahah
ExcluirParece mesmo ser denso, seria um livro diferente do que costumo ler e o achei muito interessante, só lembrei de meu amigo feminista, colaborador lá do blog, ele com certeza deve se interessar muito por esse livro ><
ResponderExcluirBeijos
Meu outro lado
Oie Isabel =)
ResponderExcluirUm livro bem diferente do que eu costumo ler. Denso mais pelo visto com um história inteligente.
Na verdade os maiores dilemas da humanidade continuam sendo os mesmos desde que tomamos conciencia que existimos rs...
Ótima dica!
Beijos e um ótima semana;***
Ane Reis.
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