Me perdoem por parafrasear de forma torta, mas a internet
não é tão confiável neste caso e sou péssima para decorar o que quer que seja.
De qualquer maneira, o poeta disse que há poesia até no elevador, então não
existiria, de fato, o tal “encanto da lama”, que leva estrangeiros ao pagamento
de somas altíssimas por um tour em um morro carioca?
Ainda que protegidos por redomas de cercas elétricas, muros
altos e indiferença, creio que qualquer brasileiro possa afirmar com certeza –
o encanto da lama, que exalta pobreza como algo belo, é uma ilusão. Um alívio,
portanto, ter Zeca Camargo reafirmando isso na sua introdução a Em busca de um final feliz.
Em uma análise rasa, os “personagens” (que na verdade são
pessoas reais, que passaram por diversas entrevistas com a autora) de Katherine
Boo não deveriam saber que sua vida é tão ruim assim: assim como não pensamos
no fato de que estamos imersos em ar porque assim sempre estivemos, nenhum
deles conhece uma vida melhor para parâmetro de comparação.
Mas ah, a desigualdade social! Não é um problema só
brasileiro, e desce amarga pela garganta dos habitantes da favela de Annawadi,
onde a história se passa. Mesmo com resquícios de um sistema de castas milenar,
todos eles querem sim “subir na vida”. Não há nenhuma ilusão de riquezas sem
fim ou estrelato em Bollywood, e sim de coisas aparentemente singelas (para o
leitor) como uma casa sem infiltrações, um emprego com uniforme bonito e
diploma universitário.
Na versão de Annawadi da selvageria capitalista, alguns se
dão melhor do que os outros: a família de Abdul, mulçumana, prospera aos poucos
com um negócio de catação de lixo. A pequena reforma na casa (que não será mais
invadida por dois palmos do lago de esgoto no meio da favela) atrai a atenção e
a inveja da vizinha Fátima, a Perna-Só, ridicularizada por todos graças a sua
deficiência.
No Brasil, a perspectiva de alguém ser condenado por
“incitar suicídio” parece ridículo, mas na Índia (onde mulheres são,
diariamente, incentivadas a se matar após a morte de seus maridos, não se tornando
assim um “peso financeiro” para as famílias dos mesmos) isso é bem real e
complicado. Fátima se auto-imola, acusando seus vizinhos de a levarem a tal
ato, condenando então Abdul e nos levando para um passeio no intrincado sistema
de corrupção indiano. Não que eu ache que devemos comparar esse tipo de male,
mas se me permitem cair nesse erro, a nossa corrupção soa como brincadeira de
criança ao lado da praticada pelas autoridades da Índia.
Isso nos leva a Asha, uma das grandes benfeitoras da favela
– membro de um partido político, a mulher faz de tudo para ascender
socialmente, levando para seus esquemas a sua filha Manju, que sonha em ser
professora. A ambição de Asha é tragicômica, tão intensa e desesperante que não
é possível torcer (contra ou a favor) desta mulher.
Quase todas as resenhas de
Em busca de um final feliz que li continham uma pequena nota de
estranhamento pelo livro ser encaixado em não ficção: o nível de detalhe é
tamanho que não há como desconfiar de pinceladas ficcionais da autora.
Katherine Boo, porém, passou meses e meses em Annawadi, entrevistando
repetidamente os moradores sobre o ocorrido com a Perna-Só, justificando então
a sua prosa fluida e cheia de certezas.
Utilizando-se de um material tão cru, seria quase impossível
(e trágico) acusar a autora de artificialidade ou falta de verossimilhança –
não, Em busca de um final feliz é
genial em trazer todos os envolvidos não à vida (porque eles de fato a tem) mas
sim ao lado do leitor, como se nós fossemos um intrometido chato espiando pelas
frestas entre as portas da favela.
Existem algumas divagações com as histórias não muito
relacionadas aos núcleos principais, mas tudo se relaciona e se torna
interessante e essencial. Só há um grande problema em Em busca de um final feliz, que diminui exponencialmente a nota
inicialmente merecida pelo livro: a frieza.
Sim, a narrativa é extremamente fria e impessoal. Eu não
queria o estilo emocional de Nicholas Sparks sugerido pela tradução do título,
subtítulo e capa, mas um pouco mais de aproximação para com aqueles que fizeram
parte de sua vida por meses e meses seguidos faria bem a Katherine Boo. Como
qualquer livro que trata da pobreza e da miséria, Em busca de um final feliz é recheado de situações degradantes,
mas o tom distante com que elas foram narradas fez com que essa manteiga
derretida assumida derramasse uma quantidade incrivelmente pequena de lágrimas
no decorrer da leitura.
A coisa de fato bela na obra de Katherine Boo é a força de
seus personagens, tirada sabe Ganesha de onde. Mas há algo diferente que torna
o livro de Katherine Boo sobre a dura vida em uma favela em Mumbai atraente: é
o encanto da humanidade, aflorado quando sua existência em si já é uma situação
limite, sem necessidade de seqüestros, vilões malignos ou apocalipses para tal.
Não: o antagonista já é o próprio “destino”, se é que ele existe.
Se há poesia na dor? Sim, há. Mas esse é um tipo de verso
que ando dispensando – pelo menos na vida real.
cara gostei da sua resenha, nao estou tão animada com esse livro pra ler, mas animei um pouco agora
ResponderExcluirme apaixonei pela sua escrita. É raro encontrar isso na internet. Me envolveu, conquistou e deixou com fome de mais. Sinceramente, não é um tipo de literatura que eu goste. Leio, na maioria das vezes, para fugir deste mundo. Não sei como seria minha reação diante do sofrimento dos personagens. Talvez um dia eu tome coragem encare esse outro lado da vida.
ResponderExcluirParabéns pelo blog!
AWWN, obrigada :D
ExcluirCompraria só pela capa =D
ResponderExcluirAdorei
Isabel, essa foi a melhor resenha do livro que li até agora. Eu fui um dos que estranhei o livro ser descrito como não ficção, ele me pareceu bem vívido mesmo, tão repleto de detalhes que me parecia ficcional - ao menos em alguns trechos - mas gostei muito dele. Quanto ao afastamento da autora, acho que ele é necessário para que ela não se envolva emocionalmente com seu objeto de estudo - o que é difícil, mas não sei quem foi o gênio que passou a exigir isso de jornalistas, antropólogos e sociólogos. Mas acredito que ela fez um bom trabalho, é importante que as pessoas olhem para as minorias e as traga à luz do mundo, já que o conhecimento é um primeiro e tímido passo de uma maratona. Se algo mudará um dia? Talvez um dia.
ResponderExcluirOi Isabel!
ResponderExcluirSenti vontade de chorar só lendo sua resenha e pensando em tudo que essas pessoas tiveram de passar... Acho que não conseguiria ler o livro sem chorar.
Mudando de assunto, tentei comentar no post da receita e não achei a caixa de comentários. Que manjar é esse?! Fiquei morrendo de vontade!
Beijos,
Sora - Meu Jardim de Livros
FOR DEUS
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