Para qualquer um que escreve é extremamente complicado
pensar em todo mundo como gente de verdade. Gente com experiências, amores e
gostos, aquele conjunto fantástico que dá a cada ser humano singularidade e complexidade
– os depressivos que acham que suas vidas não são valiosas não poderiam cometer
maior erro, ao esquecer que suas memórias são tão únicas e particulares que
justificam por si só a sua passagem pela terra.
Mas todo personagem é Frankstein – o sorriso daquele cara
que você viu no ônibus, o tom de voz de sua amiga, o levantar de sobrancelhas
de sua mãe – e se o pensar nisso for permitido, o tal do escritor ou escritora
se consumirá de angústia por não poder pegar pedacinhos de todos que cruzam nossos
caminhos. É impossível, e isso é uma merda.
Se você perguntar em um jardim de infância, porém, serão
muitos os que responderão que seus pais se chamam “papai”, “mamãe” ou qualquer
outro título que não é obviamente um nome próprio. Mesmo depois das fraldas
abandonadas, nunca conversei com um filho que não padecesse, na maior parte do
tempo, do estranho egoísmo (algumas vezes justificado, mas vá lá) de achar que
as pessoas que o puseram no mundo (ou o criam como se tivessem feito) são menos
do que pessoas. Porque eu me impressionei ao descobrir que meu pai levou
algumas surras da polícia ou que minha mãe trabalhou por seis meses como
telefonista em Porto Seguro antes de entrar na universidade? Porque cargas
d’águas eu supus, sem sequer pensar no assunto, que os mais de quarenta anos
dos dois eram mais vazios do que os meus dezessete?
Não, até mesmo aquele que estremece ao sequer pensar em sair
da sua zona de conforto tem mais história para contar do que uma edição
completa de As crônicas de gelo e fogo.
E aqueles que viveram então – ah! Que vergonha é não poder conversar com eles!
Como a maior parte de nós, os gêmeos Simon e Jeanne,
protagonistas do filme Incêndios,
tiveram uma verdadeira biblioteca de histórias em casa a vida inteira e não
aproveitaram – sua mãe, (originada de um país indefinido no Oriente Médio e
radicada no Canadá) Nawal, ganha somente o rótulo de “excêntrica”.
No melhor estilo de filme de Sessão da tarde o testamento de
Nawal traz exigências muito estranhas, na forma de duas cartas: uma a ser
entregue ao irmão (de existência desconhecida pelos gêmeos) e a outra ao pai
dos dois, que tinha, teoricamente, morrido na guerra entre mulçumanos e
cristãos na sua terra natal.
Ao contrário dos filminhos repetitivos da Globo, não há uma
herança gigantesca como prêmio para tamanho esforço, nem mesmo alguma promessa
de satisfação ou felicidade – o tom do testamento é sombrio, não deixando
dúvidas quanto ao que estará por vir caso a busca seja concluída. Simon não
demora muito a ignorar o testamento, ironizando-o – “Será que temos também um cachorro?”, ele diz.
Afinal, uma família grande sempre tem um cachorro.
Mas Jeanne, professora assistente de Matemática Pura (aquela
que tenta resolver o insolúvel, profissão que se encaixa bem na personagem),
não consegue se concentrar nas suas equações e incógnitas e, por sugestão de
seu orientador, vai cumprir a missão que lhe foi confiada. Por baixo de panos e
mais panos de picuinhas familiares e promessas não cumpridas, ela passa a
realmente conhecer Nawal, que como todos os estranhos, conhecidos e amados que
fazem parte de nosso cotidiano, tem incontáveis (e dolorosas) histórias para
contar.
Não encontro palavras para descrever Incêndios – sabe aquela obra para qual “maravilhoso” soa como pouco
demais? É isso. Não dá para saber ao certo em momento nenhum qual é o país do
qual o filme trata (embora eu jurasse, até checar de fato no IMDB, que se
tratasse do Líbano) mas a guerra retratada (na qual Nawal se envolve
profundamente) é uma ótima amostra daquelas que fizeram o Oriente Médio ser
apelidado como “barril de pólvora”.
Isso sem falar no tal do choque cultural, tema do qual não
dá para passar longe em um filme de produção estrangeira – não há nenhuma
grande questão aqui, só aqueles detalhes aparentemente insignificantes para os
locais, mas enormes para os forasteiros, colocados com uma sutileza ímpar.
Há um trecho de aproximadamente dez minutos no final do
filme que é extremamente deslocado – tanto em termo de ritmo quanto de
qualidade – mas felizmente o estilo é retomado rapidamente. Passei quase um dia
tentando descobrir o tema de Incêndios,
e não consegui classificá-lo direito – não é um filme de guerra ou de protesto,
muito menos um mero drama familiar. Odeio generalizações, mas este é um
daqueles fantásticos filmes sobre as pessoas, seus sentimentos crus, suas
promessas desfeitas e sonhos perdidos. A simplicidade alcança o céu.
Uau! Que resenha. Não conhecia o filme, mas parece que não é como nenhum outro que já tenha visto.
ResponderExcluirBeijos!
Só digo uma coisa, resenha muito boa!! Adorei e irei assistir o filme ;)
ResponderExcluiroie Isa
ResponderExcluirnão faz meu gênero, mas com a sua resenha é impossível não se interessar, então espero ter oportunidade de assistir em breve;
bjos
Oie Isabel =)
ResponderExcluirConforme fui lendo seu texto eu meio que fui criando uma história propria, e fiquei imaginando como ela iria terminar. Só na metade percebi que que seu texto se tratava de uma resenha de filme rs...
Gostei do enredo do filme. Gosto de filmes que me forçam a pensar e que tenham uma dose de suspense de plano de fundo. Vou anotar a dica aqui!
Beijos e uma ótima semana;***
Ane Reis.
mydearlibrary | Livros, divagações e outras histórias...
@mydearlibrary
oi querida,
ResponderExcluirbem diferente a resenha, até custei a perceber que era hehehe Não conhecia o filme, mas fiquei muito curiosa. Parece bem, como tu dissestes, cheio de história pra contar até depois de ver.
boa semana
;*
www.redbehavior.com
Aonde você encontra esses filmes? Haha, nunca tinha ouvido falar desse e me parece mais um daqueles casos em que ótimos filmes são ignorados simplesmente por não serem de super heróis (e que fique claro que gosto de filmes de super heróis, rs). É uma pena que coisas boas sejam tão pouco divulgadas. E é isso mesmo, cada pessoa, com seus milhões de retalhos e emoções, são únicas. Jamais devemos assumir que conhecemos todas as faces de uma pessoa, mesmo que seja alguém com quem convivemos. (:
ResponderExcluirlindo blog.
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