Terminei de ler Rio
2054 há pouco e fui impelida por aquela vontade ímpar e avassaladora de
falar sobre ele – a mesma vontade que me fez criar esse blog, aliás. Penso a
exaustão em uma introdução legal para esse post, mas não dá. Tudo que me vem a
mente é: “porra, que livro”.
A chamada de cidade maravilhosa (que no julgamento da minha
única visita feita por alguns dias em 2010, merece o título, ao menos no
quesito belezas naturais) foi divida em duas partes: a Rio Alfa, morada dos
ricos e chamada de Luzes; e a Rio Beta, apelidada de Escombros e lar dos mais
pobres. Passar de um lado para o outro demanda uma grande burocracia e uma
barreira de soldados, que matam sem piedade qualquer um que tente atravessar
ilegalmente.
Como o próprio autor reflete no começo, não é muito
diferente da situação atual. Sim, há livre transito, mas atire a primeira pedra
quem nem ao menos nunca estranhou ver alguém mau vestido em um Shopping, de tão
raro que é o encontro entre a alta e média sociedade de consumo e seus menos
favorecidos.
O apartheid completo (já há muito tempo cristalizado nas
mentes e na cultura da cidade e do país como um todo, que não mais existe em Rio 2054) foi concretizado depois de uma
guerra separatista, onde um grupo rebelde detonou uma bomba atômica suja
(desviada dos americanos) no centro da cidade.
Miguel não desconhece esse caráter perigoso do centro, mas a
radiação recente não parece fazer muito efeito nele – o rapaz de dezenove anos
dos Escombros vai e volta de lá, tirando da área parte de seu sustento, que se
baseia em vender membros mecânicos “escavados” para seu amigo pseudo-médico,
Nicolas.
Conseguir peças para Nicolas, dinheiro para a comida e se
livrar da violência são, aliás, os únicos objetivos de Miguel, que prefere
levar uma vida tranquila nos Escombros. Parte de sua fantasia de futuro foi
destruída com o término do namoro com Nina, namorada de adolescência com quem
provavelmente se casaria: a garota, fascinada pelas Luzes desde pequena, o
acusou de falta de ambição ao perceber que o namorado nunca tentaria ganhar
dinheiro o suficiente para uma travessia ilegal. Contraditoriamente, a menina
que faria qualquer coisa para ter um passaporte para o outro lado se afasta
cada vez mais de seus objetivos, ao afundar seu dinheiro e sua saúde nas
drogas, válvula de escape comum nos Escombros.
Temo a privatização dos serviços públicos como o diabo teme
a cruz. Não que eu seja inflexível sobre o assunto e ache que qualquer tipo de
privatização é danoso, longe disso. Só acho que, de forma geral, elas trazem
mais danos do que benefícios, como em Rio 2054: a administração da cidade é
cedida desde a guerra a um consórcio de três empresas que, obviamente, esquecem
completamente da existência dos Escombros até que algo aconteça e uma
intervenção banhada a sangue e coroada com crueldade seja necessária.
Esse “algo”, no presente caso, atende pelo nome de Éden, uma
gangue de motoqueiros que entra no circuito das corridas locais deixando um
rastro de mortes e vitórias. Sua líder, Angra, parece possuir estranhos poderes
e preocupa as Luzes, que colocam na mão de Miguel e de alguns amigos
motoqueiros a resolução deste problema.
Logo nos primeiros capítulos, o cenário Cyberpunk me deixou
alucinada: era a combinação perfeita de tecnologia, atraso e pós apocalíptico.
A Rio Beta é excluída dos avanços do resto do mundo graças a falta completa de
internet e investimentos, e esse isolamento parece alienígena para quem vive no
mundo de hoje.
Mas funciona.
Encontrei em Rio 2054 uma ótima razão para advogar que
autores nacionais escrevam livros que se passem por aqui: ainda que seja uma
versão futurística da cidade onde o autor vive, não há, em nenhum segundo (da
maneira de falar dos personagens a descrição da beleza do mar) qualquer tom de
artificialidade.
Confesso que, a priori, fiquei meio irritada com o aspecto
“salvador de donzelas em perigo” de Miguel. Detesto mais do que tudo essa noção
ultrapassada, sobretudo em um livro que se passa em um país que, ao menos 41
meros anos antes da história começar, possui nas mulheres suas maiores heroínas
– as mães pobres que tocam sozinhas ou com pouca ajuda as suas famílias,
professoras de educação infantil que fazem seu dificílimo e pouco valorizado
trabalho por péssimos salários e todas as outras que compartilham de medos e lutas
só pelo gênero em que nasceram. Felizmente, o crescimento da importância da
figura de Angra no enredo veio trazer o alívio de um livro tão bom não padecer
de um defeito tão grave.
Distopias são feitas para instigar a reflexão sobre algum
problema contemporâneo. De uma forma ou de outra, Jorge Lourenço conseguiu, em Rio 2054, falar em maior ou menor nível
de todos eles, com uma história tão envolvente que me fez virar páginas
invisíveis quando o livro terminou. A história de Miguel, Angra e Nina de fato acabou, mas peço encarecidamente por mais narrativas no mesmo universo de
Rio 2054 – o fascínio das Luzes e os
horrores dos Escombros são grandes e complexos demais para se encerrarem por
aqui.
oie Isa
ResponderExcluirnão conhecia o livro, mas pela sua resenha ..uou, preciso lê-lo o quanto antes.
Bjos
Acho que a partir do momento em que você disse: "porra, que livro" Eu já fiquei com vontade de ler. Não tem como descrever melhor um livro que acaba com a gente de tão bom que é rs
ResponderExcluirBeijos
Pepper Lipstick
Me deu muita vontade de ler esse livro porque apesar de ser uma história fictícia, tem muito, muito de real. O Rio é exatamente isso: Alfa e Beta. Essa cidade é sim muito linda, porém a beleza está se restringindo ao natural.
ResponderExcluirOioi Isabel,
ResponderExcluirAcredita que já cheguei a pegar o livro na livraria e quaaaaaaaaaase comprar, mas eu não tinha dinheiro suficiente pra comprar /chora
Gostei muito da sua resenha e me deu mais vontade pra ler e me arrepender de não ter comprado ele naquele dia HAUEHUA
Beijos,
Nathália
Nova resenha em Livroterapias
Assustadoramente parecido com a realidade, né? Fiquei muito curiosa para ler!
ResponderExcluirOlá, Isabel! Caramba, gostei MUITO da sua resenha. Só de ler uma resenha como essa dá ainda mais vontade de terminar de escrever meu próximo livro. Dessa vez, ainda não é uma sequência de Rio 2054, mas um livro de fantasia urbana que também se passa no Rio de Janeiro (e também não entendo essa mania meio colonialista de escritor brasileiro que faz história se passando na Inglaterra e nos Estados Unidos).
ResponderExcluirMas, num futuro não muito distante, pretendo dar continuidade ao mundo de Rio 2054 sob o ponto de vista de outros personagens que os leitores conheceram no livro :)
Apesar do protagonista ser realmente um homem, ainda vejo as mulheres de Rio 2054 como as mais poderosas de toda a história: Angra e sua raiva e ideais de mudança, Amélia e sua fama nos Escombros, Ruby como a única com a cabeça no lugar na Tríade e um outro personagem sobre o qual não posso falar muito sem soltar spoilers.
Muito obrigado pela resenha, Isabel. E tenha certeza de que são testemunhos como esse que motivam os novos autores a continuarem escrevendo!