Unwind tem uma premissa
estranha, mas que ao mesmo tempo gira em torno de algo que divide
muita gente. Anos antes da história (uma distopia em um futuro
distante, mas não tanto) houve a chamada “heartland war”,
ocorrida graças ao conflito entre os “pró vida”* e “pró
escolha” - os dois lados na briga sobre a legalização do aborto –
que atingiu níveis de tensão máximos.
Aí há um problema que me fez franzir
um pouquinho a testa no começo da leitura. Sim, sei que a
legalização do aborto é uma questão importante (essencial,
levando em conta o número de mulheres mortas em abortos ilegais) mas
mesmo em um país como os Estados Unidos (em que religiosos radicais
e progressistas brigam feroz e nem sempre honestamente) uma guerra
civil completamente dedicada à isto me parece um pouco exagerado.
Mas distopias nem sempre são feitas
para serem críveis; então continuemos. Como forma de terminar a
guerra – e satisfazer ambos os exércitos pró vida e pró escolha
– foi assinada a Bill of Life (algo como Constituição da Vida),
que estabelece que a vida humana é intocável do momento de
concepção até os treze anos de idade. A partir daí, porém, os
pais podem escolher “abortar retroativamente” uma criança,
mandando para ser Unwinded, ou seja: todas as partes de seu corpo
(exceto por aquelas como o apêndice, que você não usaria de
qualquer jeito) serão enviadas para pessoas que necessitam de uma
doação, cada vez mais comuns uma vez que a ciência parou de
procurar curas após a legalização de Unwinding.
Prática que, aliás, não é só
legal: é aceita por toda a sociedade. Problemas número dois e três
vem aí: como pró-escolha ferrenha eu mesma, tenho minhas dúvidas
de se qualquer um dos lados acharia que Unwind é uma boa
solução para a sua briga. Toda a briga pró-escolha não é sobre
ter a responsabilidade sob uma criança ou não, e sim sobre os
direitos da mulher sobre o próprio corpo. Unwinded seria uma solução
pobre, e duvido que os exércitos da Heartland War discordassem de
mim.
O problema – ou na verdade a solução
– é que Neal Schurman é tão perfeito na caracterização e
descrição de seu mundo que, mesmo com esses dois buracos históricos
gigantescos, é difícil não acreditar que ele é real. O mundo de
Unwind parece ter exigido um nível de planejamento e detalhe
tão grande que é impossível não admirar.
Entre toda essa coisa, temos três
personagens que vão ser Unwinded por motivos bem distintos. Primeiro
há Connor, um garoto bastante rebelde cujos pais não conseguem
controlar. Risa cresceu em um orfanato do estado, e aparentemente sua
vida – e sua possível brilhante carreira como música – não é
valiosa o suficiente para lhe garantir um lugar por lá – Unwind é
então colocado como solução. Por último ficamos com o mais
estranho, Levi, um garoto de uma família religiosa riquissima que,
pela velha regra bíblica dos dez por cento como dízimo, tem que dar
um de seus dez filhos ao mundo, filho este que vai feliz e satisfeito
por cumprir o seu dever como religioso.
Os caminhos dos três se cruzam em um
estranho acidente de carro. A fuga de Unwinds, algo obviamente comum,
é tratada seriamente, com policiais eficientes trabalhando contra
isto e população atenta a jovenzinhos vagando sozinhos por aí. O
nosso estranho grupo, porém, é extremamente inteligente, e
sobrevive de uma maneira ou de outra, em uma corrida aparentemente
interminável.
Já li Unwind faz um tempinho, e
o livro ainda me deixa um pouquinho confusa sobre o que pensar dele.
Como já disse, a construção é boa, salvando a premissa de mundo
semi-absurda. Os personagens, obviamente, crescem bastante no
caminho, em um arco bem traçado e crível.
As resenhas que li discutem se o livro
seria contra ou a favor da legalização do aborto, mas não creio
que isso seja necessariamente relevante – com a sua solução
absurda achada para essa discussão, o autor a colocou em segundo
plano, discutindo, na verdade, o valor da vida. Não da vida de um
feto, mas da vida dos Unwind que existem, em maneiras diferentes, na
nossa realidade; da vida de mães que abandonam os seus filhos nas
portas de casas exubertantes por não terem o mínimo de estrutura
para cuidar dos mesmos e, obviamente, na individualidade de cada um,
construída através dos anos, preciosa demais para ser jogada fora
por mais marginal, rebelde ou sem expectativas que seja.
Realmente, a premissa desse livro é muito estranha. Como assim as ideias de que é a favor e de quem é contra a legalização do aborto causaram uma guerra que mudou completamente o mundo?
ResponderExcluirLeria esse livro só por causa da estranheza que me causou (e também porque eu sou a favor da legalização do aborto e vivo entrando em discussões por causa disso).
Beijo. :)
Não é uma leitura que me atraiu não. Apesar de ser fã de distopias, como você falou, nem todas agradam. E essa não me encheu meus olhos, realmente.
ResponderExcluirA temática da legalização do aborto é interessante, mas, também, a forma que foi levada não faz muito sentido. Sei lá... Um país como os EUA criar uma guerra por isso? Achei um pouco além da conta.
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