Eu
ainda me lembro da primeira história que escrevi no computador.
Àquela
época, meus pequenos trabalhos à mão eram vários: folhas de
ofício retiradas furtivamente da impressora, dobradas ao meio e
grampeadas, preenchidas com histórias escritas à giz de cera e
desenhos. Um dia, por uma razão qualquer, resolvi escrever no
computador – um Windows 98 na cor gelo – e assim nasceu a minha
primeira história.
Sei
lá quantos anos eu tinha – não mais do que nove, provavelmente,
portanto a qualidade da produção era compatível com a idade da
escritora. Escrevi aquela história por alguns meses antes de me
refugiar nas fanfics de Harry Potter, mas até hoje guardo uma de
suas versões impressas, junto com outros pequenos trabalhos que
fazem parte da minha história com a coisa que mais amo fazer no
mundo. Mudei bastante de gênero: até hoje escrevo para um público
jovem, mas que fui do romance ao sobrenatural. Até os meus catorze
anos, porém, todas essas histórias tem uma coisa em comum: elas não
se passam no Brasil.
Para
alguém criada a base de Meg Cabot e romances adolescentes afins, não
é difícil detectar por que: eu tinha zero de referências para
escrever histórias que eu amasse mas que se passassem no meu país.
Os clássicos livros de escola não me cativavam o suficiente para
que eu quisesse imitá-los, e a única coisa nacional na minha
estante que eu havia de fato pedido para os meus pais eram os gibis
da Turma da Mônica. Só aos doze ou treze anos fui descobrir a ótima
série de livros infanto-juvenis Poderosa, mas antes disso, eu
acho que nunca havia pensado que histórias poderiam se passar num
colégio, e não em uma High School. E mais ainda: que as minhas
ficariam melhores e mais verossimeis caso eu o fizesse.
Esse
pensamento foi se desenvolvendo aos poucos, e quanto mais minha
estante se enchia de livros nacionais, mais eu percebia que havia
algo de especial neles – mesmo aqueles que se passavam em universos
paralelos traziam um sentimento gostoso de identificação com a
história, de me deparar com um personagem chamado João ou perceber
que os hábitos e dramas eram iguais aos meus – mesmo sendo pessoas
diferentes, nós pertencemos a mesma cultura, e essa ligação nós
faz compartilhar lembranças. Algum tempo depois, essa maravilhosa e
já antiguinha TEDTalk me abre ainda mais os olhos:
“O que isso demonstra é, eu acho, o quão impressionáveis e vulneráveis nós somos em face a uma história, particularmente quando crianças. Por que tudo que eu havia lido eram livros nos quais os personagens eram estrangeiros, eu me convenci que livros por sua própria natureza tinham que ter estrangeiros neles e tinham que ser sobre coisas com as quais eu pessoalmente não me identificava.”
Sempre
que tento definir por que a literatura é importante – tanto para
mim como indivíduo e para nós todos como espécie – chego as duas
mesmas conclusões: ela cria empatia, nos fazendo conviver melhor com
os outros e ela espelha nossas personalidades e problemas, fazendo
que convivamos melhor com nós mesmos (daí a importância de termos
personagens membros de minorias – negros, gays, gordas, trans e
afins – na ficção, mas isso é assunto pra outro post). Nos
atenhamos a essa última parte.
Enquanto
a maior parte dos nossos problemas são universais e serão
encontrados em livros escritos por autores de qualquer nacionalidade,
a cultura é uma força poderosa. Cada país e, no caso da vastidão
do Brasil, cada região tem hábitos e forma de pensar próprios, que
influenciam extremamente a vida das pessoas – portanto devem, por
consequência, influenciar a vida de possíveis personagens que
autores deles provindos criem.
O
que a minha eu de doze anos não sabia é que, por mais que eu lesse
sobre Londres e Nova Iorque, eu nunca poderia colocar uma Mary
vivendo nela e tornar isso verossímil – uma Maria estudante de
intercâmbio brasileira talvez, mas uma Mary não. Existem rituais e
pequenos hábitos que dão vida ao personagem que, mesmo com pesquisa
extensa, eu não conseguiria reproduzir. Mas eu não sabia, por que
eu não lia livros brasileiros – ao menos não que se passassem no
Brasil.
Veja
bem, longe de mim defender que um autor só trabalhe com personagens
de sua nacionalidade – só afirmo que é essencial que assim ocorra
na maior parte dos casos, sobretudo em um mercado editorial que só
começa recentemente a “por fé” nos autores nacionais em larga
escala. É cansativo ver que boa parte dos autores nacionais –
sobretudo aqueles no começo – não escrevem obras que se passem no
nosso solo, com nossa gente ou nossa cultura. Já defendi a
literatura nacional frente a amigos milhares de vezes, mas como ter
argumentos se esta for mera cópia da estrangeira?
Felizmente,
temos honráveis exceções, algumas delas resenhadas aqui no blog:
A arma escarlate,
de Renata Ventura (do qual eu nunca cansarei de falar) faz também
uma defesa apaixonada da cultura brasileira (sem deixar de lado
críticas relevantes) e assim se tornou uma das minhas sagas
favoritas, me fazendo aguardar ansiosamente por cada exemplar novo.
Rio 2054 se
passa na belíssima capital fluminense, e faz algo semelhante.
Quem
dera ter encontrado esses livros aos doze anos.
[Se
você estava vivendo em uma câmera criogênica pelos últimos anos e
nunca assistiu a essa palestra da Chimamanda, por favor, assista: ela
fala sobre vários problemas que a nossa “colonização cultural”
acarreta.]
OI Isabel, eu gostei bastante da reflexão. Sabe que eu também passei por um pouco disso que você comenta, mas acho que as meninas mais novas já vêm conhecendo melhor a literatura nacional. Minhas primas mais novas, em vez de Meg Cabot e outras autoras internacionais, vivem abraçadas aos livros da Paula Pimenta e a série Poderosa. É bom saber disso, porque também senti falta de alguma proximidade com os personagens mais semelhantes a mim, ainda que também seja preciso variar a leitura e conhecer de tudo um pouco.
ResponderExcluirBeijos
Oi Isa, tudo bem?
ResponderExcluirAdorei a sua reflexão, apesar de eu agir um pouco de maneira contrária a você. Eu infelizmente nunca consegui ler nada de literatura brasileira, sem ser a clássica - sou apaixonada por Machado de Assis. Confesso que já tive muito preconceito com a literatura do nosso país. Hoje em dia isso passou, mas devo admitir que sempre acabo passando um livro estrangeiro na frente de um brasileiro na hora de comprar - e isso nem é exatamente voluntário da minha parte, é algo que acontece. Tenho muita vontade de ler Paula Pimenta por exemplo, mas nunca comprei um livro dela.
O que você disse sobre a escrita faz totalmente sentido, uma vez que fica realmente estranho e inverossímil um autor falar em sua história sobre uma cultura que não conhece.
Um abraço,
http://winterbird.com.br