14 junho 2013

Que coisa traiçoeira é acreditar que uma pessoa é menos do que uma pessoa




Para qualquer um que escreve é extremamente complicado pensar em todo mundo como gente de verdade. Gente com experiências, amores e gostos, aquele conjunto fantástico que dá a cada ser humano singularidade e complexidade – os depressivos que acham que suas vidas não são valiosas não poderiam cometer maior erro, ao esquecer que suas memórias são tão únicas e particulares que justificam por si só a sua passagem pela terra.

Mas todo personagem é Frankstein – o sorriso daquele cara que você viu no ônibus, o tom de voz de sua amiga, o levantar de sobrancelhas de sua mãe – e se o pensar nisso for permitido, o tal do escritor ou escritora se consumirá de angústia por não poder pegar pedacinhos de todos que cruzam nossos caminhos. É impossível, e isso é uma merda.

Se você perguntar em um jardim de infância, porém, serão muitos os que responderão que seus pais se chamam “papai”, “mamãe” ou qualquer outro título que não é obviamente um nome próprio. Mesmo depois das fraldas abandonadas, nunca conversei com um filho que não padecesse, na maior parte do tempo, do estranho egoísmo (algumas vezes justificado, mas vá lá) de achar que as pessoas que o puseram no mundo (ou o criam como se tivessem feito) são menos do que pessoas. Porque eu me impressionei ao descobrir que meu pai levou algumas surras da polícia ou que minha mãe trabalhou por seis meses como telefonista em Porto Seguro antes de entrar na universidade? Porque cargas d’águas eu supus, sem sequer pensar no assunto, que os mais de quarenta anos dos dois eram mais vazios do que os meus dezessete?

Não, até mesmo aquele que estremece ao sequer pensar em sair da sua zona de conforto tem mais história para contar do que uma edição completa de As crônicas de gelo e fogo. E aqueles que viveram então – ah! Que vergonha é não poder conversar com eles!



Como a maior parte de nós, os gêmeos Simon e Jeanne, protagonistas do filme Incêndios, tiveram uma verdadeira biblioteca de histórias em casa a vida inteira e não aproveitaram – sua mãe, (originada de um país indefinido no Oriente Médio e radicada no Canadá) Nawal, ganha somente o rótulo de “excêntrica”.



No melhor estilo de filme de Sessão da tarde o testamento de Nawal traz exigências muito estranhas, na forma de duas cartas: uma a ser entregue ao irmão (de existência desconhecida pelos gêmeos) e a outra ao pai dos dois, que tinha, teoricamente, morrido na guerra entre mulçumanos e cristãos na sua terra natal.

Ao contrário dos filminhos repetitivos da Globo, não há uma herança gigantesca como prêmio para tamanho esforço, nem mesmo alguma promessa de satisfação ou felicidade – o tom do testamento é sombrio, não deixando dúvidas quanto ao que estará por vir caso a busca seja concluída. Simon não demora muito a ignorar o testamento, ironizando-o –  “Será que temos também um cachorro?”, ele diz. Afinal, uma família grande sempre tem um cachorro.



Mas Jeanne, professora assistente de Matemática Pura (aquela que tenta resolver o insolúvel, profissão que se encaixa bem na personagem), não consegue se concentrar nas suas equações e incógnitas e, por sugestão de seu orientador, vai cumprir a missão que lhe foi confiada. Por baixo de panos e mais panos de picuinhas familiares e promessas não cumpridas, ela passa a realmente conhecer Nawal, que como todos os estranhos, conhecidos e amados que fazem parte de nosso cotidiano, tem incontáveis (e dolorosas) histórias para contar.

Não encontro palavras para descrever Incêndios – sabe aquela obra para qual “maravilhoso” soa como pouco demais? É isso. Não dá para saber ao certo em momento nenhum qual é o país do qual o filme trata (embora eu jurasse, até checar de fato no IMDB, que se tratasse do Líbano) mas a guerra retratada (na qual Nawal se envolve profundamente) é uma ótima amostra daquelas que fizeram o Oriente Médio ser apelidado como “barril de pólvora”.



Isso sem falar no tal do choque cultural, tema do qual não dá para passar longe em um filme de produção estrangeira – não há nenhuma grande questão aqui, só aqueles detalhes aparentemente insignificantes para os locais, mas enormes para os forasteiros, colocados com uma sutileza ímpar.

Há um trecho de aproximadamente dez minutos no final do filme que é extremamente deslocado – tanto em termo de ritmo quanto de qualidade – mas felizmente o estilo é retomado rapidamente. Passei quase um dia tentando descobrir o tema de Incêndios, e não consegui classificá-lo direito – não é um filme de guerra ou de protesto, muito menos um mero drama familiar. Odeio generalizações, mas este é um daqueles fantásticos filmes sobre as pessoas, seus sentimentos crus, suas promessas desfeitas e sonhos perdidos. A simplicidade alcança o céu.

7 comentários:

  1. Uau! Que resenha. Não conhecia o filme, mas parece que não é como nenhum outro que já tenha visto.

    Beijos!

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  2. Só digo uma coisa, resenha muito boa!! Adorei e irei assistir o filme ;)

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  3. oie Isa
    não faz meu gênero, mas com a sua resenha é impossível não se interessar, então espero ter oportunidade de assistir em breve;
    bjos

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  4. Oie Isabel =)

    Conforme fui lendo seu texto eu meio que fui criando uma história propria, e fiquei imaginando como ela iria terminar. Só na metade percebi que que seu texto se tratava de uma resenha de filme rs...

    Gostei do enredo do filme. Gosto de filmes que me forçam a pensar e que tenham uma dose de suspense de plano de fundo. Vou anotar a dica aqui!

    Beijos e uma ótima semana;***

    Ane Reis.
    mydearlibrary | Livros, divagações e outras histórias...
    @mydearlibrary


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  5. oi querida,
    bem diferente a resenha, até custei a perceber que era hehehe Não conhecia o filme, mas fiquei muito curiosa. Parece bem, como tu dissestes, cheio de história pra contar até depois de ver.
    boa semana
    ;*

    www.redbehavior.com

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  6. Aonde você encontra esses filmes? Haha, nunca tinha ouvido falar desse e me parece mais um daqueles casos em que ótimos filmes são ignorados simplesmente por não serem de super heróis (e que fique claro que gosto de filmes de super heróis, rs). É uma pena que coisas boas sejam tão pouco divulgadas. E é isso mesmo, cada pessoa, com seus milhões de retalhos e emoções, são únicas. Jamais devemos assumir que conhecemos todas as faces de uma pessoa, mesmo que seja alguém com quem convivemos. (:

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