29 junho 2012

Equilibrium





Depois de uma terceira guerra mundial, há um consenso de que o mundo não suportaria uma quarta – para tal, na cidade-estado de Libria (uma selva distópica feita de concreto) é criado o Clero Tetragrammaton, responsável pela eliminação do que torna os seres humanos destrutivos: os sentimentos.

Mas é claro que a simples imposição social não funcionaria por si só, então algumas medidas são tomadas, sendo a principal delas o uso do Prozium – uma espécie de droga que suprime qualquer emoção humana. A arte também é considerada uma inimiga (afinal, não há maior gatilho em direção aos sentimentos) e destruída pelo Clero, com cenas de sensibilidade ímpar envolvendo o pouco de beleza restante no universo de Equilibrium: pinturas famosas queimam e gritam; poemas são recitados por personagens à beira da morte e uma crise de choro é deflagrada por alguns simples segundos de uma sinfonia de Beethoven.

John Preston é um alto sacerdote do Tetragrammaton, aluno disciplinado e servidor leal ao Pai – o governante de Libria, que possui uma enorme semelhança com o Grande Irmão de 1984. Um dia, Preston acidentalmente deixa sua dose de Prozium cair, fazendo com que tudo se modifique: uma manhã sem a droga já é o suficiente para que ele perceba que por mais alto que seja o preço a pagar pelos sentimentos, vale a pena – “sem amor, sem raiva, sem tristeza, a respiração é como um tictac de um relógio”.

A “descoberta” das emoções por parte de Preston se dá de uma forma tão violenta, tão repentina que é quase como uma dor, que é passada ao espectador nos mínimos detalhes. O mundo era a ele limitado mesmo nas menores sensações do dia-a-dia, e agora ele as tem. Como conseqüência da recuperação de seu coração metafórico, vem um enorme desejo por individualidade e uma curiosidade não comum aos librianos – afinal, formigas não podem se desviar do trabalho porque gostariam de saber de que cor são as flores.

Só há um problema que faz Equilibrium não merecer nota máxima: as cenas de ação. Embora elas não atrapalhem muito o desenvolvimento ou funcionem como um deus ex machina, algumas delas soaram bastante exageradas (ou até mesmo ridículas) para mim. É uma pena: como mostraram Matrix, Jogos Vorazes e muitos outros, é sim possível reunir reflexão e pancadaria.

Nota: 4/5

27 junho 2012

Sobrevivente





A vida de Tender Branson não foi exatamente o sonho americano: depois de sair da colônia da Igreja da Crendice (onde cresceu submisso a milhões de regras sem muito sentido) seus dias se resumem a limpar as casas dos outros de dia e atender ligações de suicidas à noite. Sim: Tender espalhou adesivos com seu número pela cidade, oferecendo um serviço bem peculiar – incentivo ao suicídio.

Afinal, viver para quê? É o que indaga nosso anti-herói, o protagonista de Sobrevivente, do autor Chuck Palahniuk – o mesmo do livro que inspirou o filme Clube da Luta. Esse pessimismo extremo perante a vida é o que guia Sobrevivente: a obra inteira é a narração feita por Tender a uma caixa preta nos seus últimos momentos– o avião que ele seqüestrou para seu suicídio está prestes a cair.

Minha impressão inicial do livro, confesso, não foi tão boa assim: o autor parecia se esforçar demais para tornar seus personagens peculiares. Provei-me errada: sim, as idiossincrasias dos habitantes do fantástico mundo de Chuck Palahniuk são inúmeras, mas impressionantemente se encaixam. Aliás, essa é a principal marca do autor: desde Tender (que, além do supracitado, também alimenta seu peixinho com Vallium e “planta” flores de plástico no jardim dos patrões) até Tyler Durden de Clube da Luta (que faz sabonetes de banha humana dentre outras ocupações não ortodoxas) as figuras fascinantes são recorrentes em seus livros.

Isso por si só já carregaria Sobrevivente nas costas, mas não: o enredo também não deixa nada a desejar. Tão especial quanto os personagens, a história de Tender é um pano de fundo perfeito para críticas ao consumismo e a religião – sendo esta última extremamente inteligente e bem-acabada. A monetarização da crença religiosa – aproveitando-se do desespero e vontade de conforto alheios – é bem satirizada por Palahniuk, primeiramente de uma maneira quase distópica – mas depois de um tempo é quase impossível não identificar: as semelhanças com a realidade não são mera coincidência.

Nota: 5/5

25 junho 2012

Espere a primavera, Bandini


 “Não escreva poemas de amor, evite a princípio aquelas formas que são muito usuais e muito comuns: são elas as mais difíceis, pois é necessária uma força grande e amadurecida para manifestar algo de próprio onde há uma profusão de tradições boas, algumas brilhantes. Por isso, resguarde-se dos temas gerais para acolher aqueles que se próprio cotidiano lhe oferece; descreva suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros e a crença em alguma beleza – descreva isso com sinceridade íntima, serena, paciente, e utilize, para se expressar, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de sua lembrança”.

Se eu fosse colocar aqui todos os trechos que considero brilhantes nessa pequena obra – uma coletânea de cartas escritas por Rainer Maria Rilke a um jovem poeta chamado Frank Kappus, que lhe pede conselhos sobre arte e vida em geral – eu a transcreveria inteira. Os conselhos dados por Rilke são geniais, são preciosos. Já abri um documento do Word milhares de vezes para tentar falar deste livro, mas minhas palavras nunca parecem honrá-lo.

Mas não estamos em outra tentativa de resenhar Cartas a um jovem poeta, e Espere a primavera, Bandini. Cronologicamente, esse é o primeiro livro de quatro da Saga de Arturo Bandini – como os livros do autor com seu mais conhecido e auto biográfico personagem ficaram conhecidos após a sua morte – relatando parte de sua infância no Colorado e o início dos conflitos de identidade que me fizeram detestá-lo em Pergunte ao pó.

Arturo Bandini é o mais velho de uma família pobre de imigrantes italianos, composta pelo pai bruto, Svevo; a mãe fanática pelo catolicismo, Maria e os dois irmãos, Federico e August. Os Bandini têm dívidas que sabem que nunca vão conseguir honrar. Svevo detesta o inverno – nessa época, é difícil conseguir trabalhos (ele é pedreiro). Maria encontra em rezar seu rosário sua única diversão e consolo. Federico alimenta a esperança de ganhar um barquinho no natal, mas sabe que esta é vã. August quer ser padre – não só pela batina em si, mas pelo conforto e pela comida. Arturo só quer roupas novas para impressionar Rosa, sua colega.

Antes que você possa dizer “mas eu já vi isso!” lhe respondo “não, não viu”. O domínio que Fante tem sob a linguagem é único. As ditas “emoções universais” são colocadas de um jeito tão próximo, tão claro, tão cru que é impossível não se envolver. Jonh Fante escreveu, em geral, romances auto-biográficos, relatando suas frustrações, desejos e paixões. Seus temas preferidos (a construção da identidade de imigrantes, a pobreza e a vida como escritor) eram todos tão profundamente pessoais que é difícil saber quem era Bandini e quem era Fante.

Ainda que inconscientemente, o autor seguiu o conselho de Rilke. E não poderia ter dado mais certo.

Nota: 5/5

24 junho 2012

Maria cheia de graça


Maria tem dezessete anos. Maria é colombiana, pobre e precisa trabalhar para ajudar no sustento da família.

Maria está grávida.

Este fato, juntamente com ter perdido seu emprego (por não agüentar ser humilhada por seu patrão), terminado com o namorado (pela recusa em casar com alguém que não ama – mesmo que esteja grávida deste alguém) e as brigas constantes em casa fazem com que a garota sinta o peso inteiro do mundo sob seus ombros. Com a família precisando do dinheiro, Maria só tem duas opções: pedir desculpas a seu chefe e recuperar seu trabalho ou ir a uma cidade maior – porque o seu povoado não possui nada além da fábrica de flores para uma jovem sem formação ou experiência – e conseguir alguma coisa por lá.

O orgulho e a teimosia – corretos, aliás, embora imprudentes – lhe fazem optar pela segunda opção – ainda que se pôr rumo a Bogotá, batendo de porta em porta, seja mais difícil do que duas frases murmuradas para o seu supervisor. Maria, contudo, não chega a precisar disso tudo – no caminho, ela encontra Franklin (rapaz que conhecera dias antes em uma festa) que lhe oferece algo mais rentável e rápido: trabalhar como mula de drogas.

Não sei se isso é devido a algum tipo de ultra sensibilidade minha, mas senti as emoções de Maria em cada pedacinho do filme: o medo de ter que criar um filho diante de condições tão desanimadoras (para dizer o mínimo), a ansiedade para arrumar um trabalho e, finalmente, a tensão, a terrível tensão derivada do fato de que ela, indo rumo ao país mais obsessivo do mundo, tem sessenta cápsulas de cocaína no seu estômago.

Maria cheia de graça é magnífico: sutil, com diálogos bem simples e coloquiais, mas isso – aliado a qualidade do elenco – transmite a mensagem de forma perfeita. Os cenários – na maior parte do tempo, vizinhanças pobres colombianas na própria Colômbia – são simples, mas, ainda assim, perfeitos para o que se propõe. O filme mostra que não é só o desespero que leva a atos desesperados e impensados e sim uma vida inteira de privações e “pequenas torturas” acumuladas – uma hora se cansa, se perde a capacidade de pensar nas conseqüências do que se faz e só se pensa em mudar um pouco aquilo.

No pôster de divulgação, lê-se: “baseado em mil histórias reais”. Real, real, real. Canso-me de usar essa palavra para os filmes que assisto e livros que leio – corro o risco dela se tornar, para mim, tão vazia quanto “bom” ou “legal” – mas essas quatro letras valem mais do que mil outros adjetivos elogiosos.

Nota: 5/5




22 junho 2012

Clockwork prince


Minhas opiniões sobre clichês se contradizem. Sim, a sensação “já vi isso – mais ou menos um milhão de vezes” é péssima, mas clichês não seriam tão largamente usados se não fossem pelo menos um pouquinho bons.

Se as pessoas não gostassem deles.

Não tem aquela coisa meio Bella/Edward/Jacob, de um triângulo amoroso que não pode se concretizar graças a insegurança da mocinha (que é, obviamente, seu único defeito de fato) e falhas imperdoáveis (no caso, respectivamente, vampirismo e licantropia) dos heróis? Pois é: Cassandra Clare, adorada por nove entre dez leitores de YA fantástica, abriu mão desse artifício no segundo livro da sua série As peças infernais (prequel para a mais famosa Os instrumentos mortais), Clockwork Prince.

Em ambas as séries, um submundo sobrenatural existe – e Tessa Gray é parte dele. A garota, contudo, é bastante incomum: ela desconhecia seu poder – o de mudar de forma – antes de se mudar para a Inglaterra e ser “treinada” por uma dupla de feiticeiras que a seqüestrou.  Depois de ser salva de suas sequestradoras, Tessa é acolhida pelos Caçadores das Sombras – uma espécie de polícia desse submundo – do Instituto de Londres. Seu novo lar, contudo, vê-se ameçado.

Desde que assumiu a diretoria do Instituto de Londres, Charlotte encontra resistência por parte dos outros Caçadores das Sombras – não por incompetência, mas por ser mulher – imaginem só: se somos raras em cargos de liderança em 2012, no século XIX, então, o estranhamento era maior ainda.

Pois bem: por ter deixado que o Magister – mundano rico conhecedor das artes mágicas e possuidor de um exército de autômatos (daí o nome da série), que pretende seqüestrar Tessa a fim de usar seu poder – escapasse, Charlotte enfrenta ainda mais oposição. Para que o Instituto não passe para as mãos do detestável Benedict Lightwood, uma missão impossível deve ser cumprida: encontrar o Magister em duas semanas.

O defeito que apontei no primeiro livro, Anjo Mecânico, sumiu – não porque Cassandra Clare matou o personagem Will ou mudou seu comportamento detestável, mas uma justificativa boa o suficiente veio a tona para os leitores. Isto, contudo, deu um tom levemente melodramático ao livro: o típico “ai meu deus, sintam pena de mim” se fez presente. O desconhecimento dessa justificativa por parte de Tessa a faz continuar entre a cruz e a espada: ficar com Will, que alterna momentos de comportamento irascível e ternura contida ou com Jem, que está morrendo – ironicamente, graças a droga que o mantém vivo?

A questão do poder feminino é explorada mais a fundo, não só com Charlotte e sua direção no Instituto, mas também com Tessa vencendo pouco a pouco seu horror a coisas não “femininas” – afinal, como andar com Caçadores das Sombras e não aprender a lutar? Embora o livro não se foque tanto em descrever a Inglaterra Vitoriana como Anjo Mecânico, ainda há algumas pitadas aqui e ali, dando toques especiais as passagens onde esta descrição se faz presente. Os diálogos parecem ser o ponto forte de Cassandra Clare: os músculos do meu rosto se organizavam em um sorriso involuntariamente (juro, eu tentei) toda vez que Will e Tessa conversavam – ambos são loucos por livros, e suas referências e debates sobre os mesmos são fascinantes.

Mesmo me decepcionando um pouco com Clockwork Prince e todo seu açúcar, o mundo que a autora criou é fascinante demais para me fazer não querer esperar até março de 2013 pela continuação. Alguém aí tem uma maquina do tempo sobrando?

Nota: 3/5

10 junho 2012

Destino


Penso muito sobre essa tal de “liberdade”. Com certeza é uma das coisas mais maravilhosas e arriscadas do mundo: mesmo a liberdade relativa que possuímos em nossa sociedade (que varia de acordo com lugar e status social) pode dar terrivelmente errado – escolher o que quer, quando e onde fazer (além de ter que lidar com as conseqüências de uma escolha ruim) nem sempre é tão agradável como pode soar a primeira vista. E mais: como usufruir completamente de nossa liberdade sem interferir na alheia? Como garantir a paz se cada um pode fazer suas escolhas – e essas escolhas nem sempre serão feitas pensando em quem está a sua volta?

No mundo de Cassia, protagonista do livro Destino, a Sociedade (como o governo é intitulado) escolhe o que você come, o que você faz, com quem você casa, no que você trabalha, como e quando você se diverte, quando você morre. Dar liberdade em pequenas doses é a chave para que isso tudo funcione: logo quando um indivíduo pode começar a pirar com essa vidinha regrada, um pequeno gosto de algo que lhe é normalmente proibido serve como antídoto.

 O Banquete do Par é um exemplo nítido disso: marcando o início da vida adulta, a ocasião permite roupas extravagantes, comida em excesso e o melhor de tudo – o recebimento de seu “par”, ou seja, a pessoa que lhe é designada para casamento de acordo com genes, gostos e preferências.
Ter um par que mora na mesma cidade – ainda mais no mesmo bairro – é quase impossível, por isso Cassia tem a impressão de sonhar quando o rosto de Xander, seu melhor amigo desde sempre, aparece na tela: estava ali a promessa de um futuro seguro ao lado de alguém a quem ela já amava e queria bem. A garota então chega em casa, curiosa para checar o microcartão com as informações do seu par – mesmo que conhecesse quase todas.

Cassia, porém, tem uma surpresa: é o rosto de Ky Markshall – o filho adotivo dos vizinhos, proveniente das perigosas Províncias Exteriores – que aparece na tela. Esse erro no sistema de uma das partes mais importantes para a estabilidade da Sociedade faz com que Cassia comece a duvidar da eficiência da mesma. Juntamente com a dor da morte do avô – que, assim como todos, partiu dessa vida no seu aniversário de 80 anos – e a curiosidade para descobrir quem realmente Ky é, Cassia faz algo para ela inédito: burlar as regras.

Apesar de a premissa de Destino não ser das mais originais – afinal, uma sociedade super-controlada é o que move vários outros livros distópicos, incluindo grandes como 1984, Admirável Mundo Novo e Fahrenheit 451 – a execução fez com que não parecesse com nada que li antes: é assustador ver tanta obediência sem questionamento. As pecinhas, como em um quebra-cabeça grande, vão se encaixando perfeitamente, demonstrando um enorme planejamento por parte da autora. A passagem de Cassia de “alienada” para “lutando pela liberdade” sinaliza exatamente o tipo de personagem que gosto: a que não nasce sabendo tudo, simplesmente evolui durante a história.

O maior problema do livro é a escrita: não sei se a tradução atrapalhou, mas a forma com que Destino é escrito é bem irregular. Algumas passagens são impecáveis; já outras, cheias de pequenas cacografias e coisinhas básicas do tipo que poderiam ter sido evitadas com mais atenção.

Mas, ainda assim, é um ótimo livro. Afinal, boas distopias são apenas um reflexo exagerado do nosso mundo – e Destino, com certeza o é.

E talvez não seja nem tão exagerado assim.

Nota: 4/5

07 junho 2012

Maus Hábitos


Em todas as cenas que Elena aparece no filme Maus Hábitos eu tive a nauseante impressão de que a qualquer segundo ela poderia se desintegrar. Seu corpo é tão frágil e magro que até mesmo um cigarro parecia-me pesado demais para seus braços finos.

O motivo é bem simples: Elena é anoréxica.

E como geralmente acontece nesses casos, a sua doença acaba não dizendo respeito somente a ela mesma – toda sua família é atingida. Seu marido, Gustavo, é menos do que um colega de casa: as obsessões da mulher a preenchem e ocupam de tal maneira que até mesmo suas conversas e desejos são permeados pela privação de comida e excesso de exercícios. Elena não é mais Elena, ela é a sua doença, ela é preenchida e comandada pela anorexia.

Linda, sua filha, é quem mais sofre: Linda é gordinha – mas só daquela maneira na qual crianças às vezes são. Elena, contudo, não aceita nem mesmo um vestígio de gordura infantil: a fim de deixá-la o “melhor possível” para sua primeira comunhão, ela a insulta, forçando a filha tomar remédios, fazer dietas malucas e exercitar-se.

Matilde, a prima de Linda, também não come, mas por razões diferentes: quando era criança, desenvolveu uma forte religiosidade – a lembrança de “curar” um engasgo do pai com orações a marcou. Portanto, depois de se formar em medicina – atendendo ao desejo dos pais – Matilde vira freira, abraçando com bom gosto as privações de sua nova vida.

Nas suas primeiras semanas no convento, uma tia de Matilde adoece. A noviça faz de tudo para ajudar sua convalesça – inclusive sacrificar-se, jejuando, comendo lixo e bebendo vinagre a fim de reafirmar sua crença de estarem ela e sua tia nas mãos de Deus. Aparentemente seus sacrifícios funcionam, fazendo Matilde usá-los para um bem maior: parar com as chuvas que assolavam o México na época e matavam e desabrigavam milhares de pessoas.

Comida, além de sobrevivência, significa prazer, História, coletividade. Nós dividimos nossos dias baseado nos horários das refeições, nos reunimos em torno de pratos, remetemos épocas de nossas vidas a certos gostos.  Ao mostrar o quão alterada pode ficar uma relação tão simples e necessária, Maus Hábitos foi profundo e tocante.

Não consigo apontar defeitos no filme: a fotografia é linda, o roteiro maravilhoso e o elenco (apesar de desconhecido) idem. O mais impressionante é que o diretor e roteirista, Simon Ross, só desempenhou esses dois papéis em Maus Hábitos: todos seus outros trabalhos na indústria cinematográfica foram na produção. Quem diria – ao menos se você acreditar na máxima de que a prática leva a perfeição – que um filme tão bom é obra de um quase estreante?

Nota: 5/5


03 junho 2012

A visita cruel do tempo


Jennifer Egan quebrou – além de algumas convenções sobre como um livro deve ser escrito – o meu padrão de escrever resenhas: seria muito pretensioso que eu tentasse (como sempre faço) iniciar esta com um apanhado geral do enredo de sua obra vencedora do Pulitzer, A visita cruel do tempo. O motivo? Não há enredo.

Não entendam mal: não é um defeito. Sei que qualquer coisa em um livro que lembre filmes de ação Hollywoodianos (‘sem enredo’ é uma expressão que já usei para descrevê-los milhares de vezes) soa má, mas é justamente essa falta de enredo que torna A visita cruel do tempo único e sublime.

Em primeiro lugar por seu personagem principal: o tempo. O livro possui mais personagens do que eu seria capaz de contar sem ficar entediada, o que quase sempre dá errado – mas porque voltar trinta páginas para relembrar o que Fulaninho fez se ele é um personagem secundário, uma mera marionete usada pela autora para demonstrar os efeitos e o poder de seu protagonista?

Pois bem: os destinos desses “personagens secundários” se entrelaçam das maneiras mais casuais possíveis. Eles mudam da água para o vinho, casam-se, corrompem-se, ganham e perdem prestígio e dinheiro, recuperam-se de vícios, morrem, vivem uma vida em um mês e depois vegetam pelo resto dos seus dias – tudo isso com uma falta de cronologia tão bem orquestrada que deixaria até Pulp Fiction com inveja.

Um parágrafo pode narrar décadas; um capítulo, segundos. Passando-se num período de cinqüenta anos, A visita cruel do tempo vai desde a vida desregrada de um grupo de adolescentes da São Francisco dos anos 70 até uma Nova Iorque de um futuro irônico, onde nossas vidas são ligadas a uma maquininha chamada console e os bebês são o público alvo de quase tudo – inclusive da indústria musical que, obviamente, teve de se adaptar, deixando qualquer complexidade e singularidade de lado. Apatia, dor, medo, vontade de aceitação, felicidade, esperança e sua ausência: tudo é colocado de maneira sufocante e crua.

Para qualquer aspirante a escritor – ou leitor chegado a formas não-tradicionais de escrita – o livro é hipnotizante: caso desavisada, eu nunca diria que foi escrito por uma só mão. Há narração em primeira, terceira e segunda pessoas; capítulos escritos em estilo tradicional com pontuação e palavras bonitas, lentos, intensos, mornos, bons, ruins e até mesmo várias páginas em gráficos e apresentações do Power Point.

Eu nunca poderia zoar o suficiente com os críticos literários hiperbólicos; mas mais uma vez (o tanto de vezes que isso vem acontecendo recentemente está me deixando com medo, mesmo) lhes dou relutantemente razão.

Nota: 5/5