2011 foi um ano especial. Com as mais diversas reivindicações – desde o impeachment de tiranos nos países árabes ou medidas mais enérgicas frente aos efeitos da crise do capital nos EUA e na Europa – pessoas de todo o mundo saíram às ruas, exercendo o único direito realmente inalienável, ao menos para a alma humana: o de ter o mínimo de liberdade, o mínimo suficiente para que protestar não seja um crime.
Embora em menor escala, essa onda de indignação chegou no Brasil, na forma de diversas causas e movimentos: alguns organizados e focados, outros bastante dispersos, mas, de qualquer jeito, compostos por pessoas que querem um futuro melhor. Em meados de outubro, fui convidada para uma manifestação anti-corrupção, e uma coisa me chamou a atenção: a descrição do evento no Facebook pedia que os participantes, se possível, usassem uma máscara de Guy Fawkes.
Em 1606, Guy Fawkes, depois de lutar pela Espanha nos países baixos, usou seu vasto conhecimento sobre explosivos para tentar explodir o Parlamento Inglês, matando assim o rei e colocando de volta um monarca católico no trono. Contudo, seu plano falhou, e Fawkes foi capturado e sentenciado à morte. O dia cinco de novembro – dia planejado para o seu plano falho – é até hoje celebrado na Inglaterra como uma vitória de seus monarcas, onde crianças – aproveitando-se da maravilha que costumam ser os feriados escolares – queimam bonecos representando o quase-terrorista.
Mas não é em tributo a Fawkes que os manifestantes sugerem o uso desta máscara, e sim à cultura pop: o personagem V., da comic novel e do filme (do qual falarei) V de Vingança, planeja o estopim de uma rebelião a partir da realização do sonho de Fawkes: a explosão do parlamento e o assassinato de um tirano.
Num tempo futuro, depois que uma arma biológica dizima boa parte da população estadunidense, a mesma praga se insinua em território britânico. Seguindo uma tendência de países em crise (a “mão forte” do conservadorismo finge dar segurança) o povo elege um candidato do partido Fogo Nórdico, que vai gradualmente retirando de seus cidadãos suas liberdades individuais e eliminando aqueles com pensamentos ou atitudes “subversivas.
É neste cenário que V. planeja acender uma centelha de rebelião no povo Inglês: munido de um vasto conhecimento sobre explosivos e uma máscara de Guy Fawkes, ele convida seus compatriotas a marcharem, no próximo cinco de novembro, até o parlamento, onde uma explosão os aguarda. Se a clara citação de uma figura histórica e seu discurso inflamado já parecem convencer a população em geral, a explosão seria mais convicente ainda: o suposto ato terrorista poderia ser um símbolo para a transformação que estaria para vir, através das ações das massas. No meio do caminho para sua primeira ação direta, ele salva Evey (cujos pais foram mortos pelo regime por serem ativistas políticos) de um estupro por membros do Dedo, uma espécie de polícia do regime. Depois de ser associada pelo governo à V., Evey precisa se esconder com ele, nos revelando cada vez mais do misterioso homem com a máscara.
V de vingança é muito bom, mas eu esperava mais em alguns aspectos. A reflexão sobre liberdades individuais poderia ser mais profunda: como disse na minha resenha de Trainspotting, acredito que a melhor maneira de educar e conscientizar seja pela arte, mostrando uma determinada coisa como ela é e fazendo com que o espectador decida por si mesmo. Não consigo pensar em um lado bom de um governo ditatorial, mas a atenção dada ao lado ruim foi insuficiente: o episódio de um padre pedófilo é tratado com tanta leveza que torna-se quase cômico e a falta de liberdade política mal é mencionada . A única exceção a esta regra é quando é contada a trajetória de uma lésbica, que, por sua orientação sexual, foi presa e feita de cobaia de armas biológicas pelo regime – mas, apesar da história ter me feito derramar algumas lágrimas, não há o devido aprofundamento do assunto.
Além disso, uma espécie de culto à vingança – não à vingança coletiva, destruindo tiranos, e sim à vingança individual, aquela feita com as próprias mãos – é feita. Certo, concordo que o pobre V. tinha razão para procurar todos seus carceireiros – assim como a moça lésbica, ele também foi feito de cobaia – e matá-los, mas um pouco menos de reverência a esta atitude não faria mal. Os aspectos irreais típicos de Comic Novels foram irritantemente mantidos eu gosto de filmes de fantasia ou de super-heroí, mas não há insinuação nenhuma de que V. tenha ganho super poderes ou que eles sequer existam no mundo narrado – ainda estou sem saber como V., com suas meras facas e espadas, consegue enfrentar um batalhão de homens armados ou entrar em instituições com segurança máxima.
Mas, para ganhar meu conceito de muito bom, o filme também possui seus pontos positivos: o principal deles é a atuação de Natalie Portman como Evey é uma delas. Alguns atores conseguem fazer com que eu goste de personagens ruins – mas isso é raro, e Evey de V de vingança foi uma delas.
Sempre gostei de jogar um joguinho comigo mesma: nas horas de tédio mental, eu me pergunto como eu seria se houvesse nascido em São Paulo, no Sudão ou na França. Não é que eu não goste da minha própria vida, não é isso: colocar-me no lugar dos outros é um ótimo exercício de tolerância. Um dia, simplesmente travei nas minhas reflexões: e se eu fosse um garoto da faixa de Gaza, e um grupo me recrutasse para sacrificar minha vida (e a de muitos outros) em nome da Palestina? A reflexão não era tão complexa pela situação em si, e sim pela pergunta que quase todos falham em responder: o que é terrorismo, e o que é luta política?
Logo de antemão, já digo: não gosto que ninguém inocente seja ferido. Mas e se meus líderes já houvessem esgotado sua saliva tentando negociar com líderes estrangeiros, sem sucesso, durante décadas? E se meu povo não possuísse atenção ou voz sem sacrificar vidas? E se, sem isso, meu povo continuasse sem terra, sem comida, vivendo dentro da grande prisão que é um campo de refugiados, amedrontados? E se meu vizinho corresse o perigo de ser preso e torturado, meu pai de ser morto e minha amiga de ser estuprada por um soldado que usa a ilegitimidade de minha nação como justificativa? E se minha melhor perspectiva para a vida fosse somente sobreviver, somente sobreviver alimentando minh'alma com nada mais do que esperança, ao invés de realmente viver de que lado eu me colocaria – do povo que vi sofrer desde que nasci ou de desconhecidos?
Não sei se um dia chegarei à resposta, mas me lembrar desta reflexão me fez achar a ambigüidade de V. é maravilhosa: fazer com que o espectador se pergunte se o herói é um revolucionário ou um terrorista (embora seus atos não pareçam ferir ninguém ou nada a não ser o ego do governo) foi algo particularmente inteligente, principalmente no clima de “caça ao terror” que o mundo se encontrava na época que o filme foi lançado.
Bom, já divaguei demais. Mas, com todos os defeitos do imperfeito mocinho deste filme, ainda estou certa de que o mundo precisa de mais gente como V. .
sempre quis ver esse filme, mas depois que vi minha irmã falando que não superou as expectativas dela, desisti. Mas depois da sua análise, eu fiquei super curiosa demais para conferir.
ResponderExcluirbjos
rasgam bastante seda para esse filme mesmo, e a chance de que não supere suas expectativas é grande... mas ainda assim é bom!
ExcluirJá assistiu " Paradise Now"? Tem tudo a ver com as suas divagações palestinas: depois do filme, revi muitos conceitos antigos meus!
ResponderExcluirTenha uma ótima quarta!
assisti paradise now sim, e é realmente um filme muuuito reflexivo. ver o ponto de vista dos martires é fantástico!
ExcluirPois é, esse filme e super comentado
ResponderExcluirEu comecei a assisti, mas nunca tive a oportunidade de terminar
Beijos
@pocketlibro
http://pocketlibro.blogspot.com
termine, se puder. apesar de não ser supreendente, o final é bem legal.
ExcluirEu assisti esse filme há um tempo atrás e confesso que achei muito longo. Acho que não prestei atencão o suficiente ou então não gostei muito. Meu irmão tem o DVD aqui em casa, preciso ter ânimo pra assistir de novo!
ResponderExcluirBeijos!
longo ele é, mas depende qual o padrão de comparação. a maior parte dos filmes hj em dia tem 100, cento e poucos minutos, já os de arte costumam ter quase três horas ahahahha enfim, acho que deve ser por causa do ritmo que vc achou longo... ele mistura cenas irreais de ação com um "vazio temático" ocasional, digamos assim.
Excluirbeijos!
O filme V é legal e é inevitável imaginar com seria viver num mundo daquele. Bem assustador!
ResponderExcluirIndiquei uma tag pra você, se lhe interessar não deixe de responder.
http://eisarah.blogspot.com/2012/02/tag-11-perguntas.html
siim! é esse aspecto de ficção distópica que amoamoamo do fundo do meu coração para sempre: a reflexão inevitável.
ExcluirV de vingança é muito foda, cara. Sério, é foda demais. Engraçado, que muitas das coisas q vc citou como pontos negativos, eu vejo como coisas positivas no filme. Como a cena do padre, o excesso de violência, o aspecto de HQ mantido no cinema e tal. Mas principalmente, a Natalie Portman está inacreditável. Não só como atriz, mas também... a mulher consegue ficar linda até careca! rs
ResponderExcluirhahah isso da violência manter só curti em watchmen... e concordo: natalie portman é linda msm com uma semi-anorexia [sério, ela tá muuito magra em v de vingança] e uma cabeça careca.
ExcluirOlá, Isabel!
ResponderExcluirV de Vingança é um filme épico, difícil de esquecer. Natalia Portman dá um show, sem dúvidas (eu tinha que comentar isso), e o enredo é intenso e bem carregado, isso não há como negar. Eu tive a chance de ver este curta há algum tempo, e pretendo rever para relembrar melhor os fatos. Gostei da sua avaliação, que a meu ver foi bem completa. Como eu já devo ter mencionado, você escreve muito bem... Parabéns!
Um abraço!
http://universoliterario.blogspot.com
obrigada francielle! e ele merece ser reassitido mesmo - acho que parece aquele tipo que tem certos detalhes que vc só pega na segunda vez...
ExcluirOlá, já assisti a V de Vingança e não posso concordar mais com você, acho que esse filme incrível, mas assim como você eu senti de eles mencionarem a falta de liberdade política. E, nossa, a Natalie Portman está incrível neste filme mesmo. E devo dizer que eu amei sua resenha, achei muito boa de verdade e você escreve muito bem.
ResponderExcluirBjs
http://palavrasdeumlivro.blogspot.com/
Olha, eu realmente adorei esse filme. Não sei ser uma pessoa muito crítica em relação a filmes porque sempre acabo gostando da maioria. Concordo com um bocado de coisas que você disse e que eu não tinha parado para analisar, mas realmente adorei a mensagem que o filme passa. Às vezes devemos lutar pelo que acreditamos.
ResponderExcluirhaa, eu tb tenho isso de gostar da maioria. isso melhorou um pouco depois que comecei a escrever aqui, mas não muito hahah
ExcluirOlá Isabel,
ResponderExcluirgostaria de parabelizá-la pelo blog, repleto de resenhas talentosas, tanto de filmes quanto de livros. Eu sou estudante do curso de História, UNEB, Campus II. Conheço sei pai ( Profº. Dr. Clóvis ). Teoricamente era para eu ser aluno dele neste semestre, mas, por forças maiores, tive que abandonar a disciplina História Cultural, disciplina esta que ele está ministrando para a turma do 5º Semestre.
Bom, mas não é isso que eu quero falar. Só coloquei estas poucas linhas para dizer que foi através de uma postagem no perfil do Profº. Dr. Clóvis, no "facebook", que cheguei até seu "blog".
Termino dizendo que eu assisti o filme e gostei muito, simples assim. Tanto as falas, quanto as cenas, são carregados de poesia (poesia nostálgicas, para alguns). Adoro filmes com um "quê" de historicidade, ainda mais sobre ações revolucionárias. Parabéns pelo "blog", e, (se é que isso seja digno de ser dito) continue!
Obs: Serei leitor "cativo".