24 janeiro 2013

Dogville




Cidadezinhas americanas no período da Grande Depressão são terreno fértil para histórias que, embora boas, revelam de forma assustadora o espírito humano. 

Dogville e seus pacatos habitantes parecem ser uma dessas sociedades exclusivas. A minúscula vila entre montanhas tem como seus únicos moradores razoavelmente abastados Tom Edison e seu pai, um médico aposentado. Essa pequena quantia mensal é a desculpa de Tom para não fazer nada – ou ser um escritor que não escreve: toda a sua obra se resume a duas palavras.


Tom também promove reuniões semanais na cidade, fazendo as vezes de pastor e filósofo ao dar sermões sobre fibra moral. Sedento por um exemplo, ele tem um quase que vindo do céu: Grace, uma jovem de roupas caras e boa aparência, que necessita de abrigo – ela foge de gangsteres e Dogville e sua montanha são final da linha.



A população consente que ela fique por um “período de testes” de duas semanas, ao final das quais ela terá que sair se assim um morador sequer pedir. Para agradar as duas dúzias de habitantes, Grace começa a fazer trabalhos domésticos para os cidadãos, que clamam não ter nenhum serviço que seja necessário – afirmação que se prova falsa nos dias atribulados que se seguem para a forasteira.

Todo filme tem aquele breve período de felicidade clandestina em que tudo parece estar bem para o pobre protagonista, ainda que problemas maiores espreitem. Grace o tem, sendo bem tratada e acolhida por todos, mas quem acha que seu “problema escondido” são os gângsteres se engana – Dogville não demora a “mostrar seus dentes”, começando a tratá-la como escrava, constantemente humilhando-a e acusando-a.


O choro é a melhor maneira de aliviar os sentimentos negativos, de limpar a alma, mas Dogville não me concedeu isso: a única emoção que pude sentir foi raiva, entalada na garganta por tudo que Grace passava. Juro que não consegui sorver uma lágrima sequer! A maneira com que nossa apática heroína é desumanizada é um golpe forte no espectador, tão convincente que é difícil dizer que faríamos diferente se fossemos um dos habitantes de Dogville. É como um linchamento: quase todos os seus participantes não são assassinos de fato, mas se transmutam em um graças as condições do momento. Falo isso não para defender o que foi feito, muito pelo contrário: Dogville é um dos filmes mais longos que assisti (beira as três horas) mas cada minuto é necessário para a transformação do caráter dos habitantes da cidade – alguém deveria ter percebido que aquilo era errado. A mensagem final, de que não há esperança, é negativa, mas não desqualifica o filme como belíssima obra de arte.



Uma coisa que muitos destacam nesse filme é a maneira com que foi feito: não existem cenários, e sim marcações a giz no chão indicando as casas e áreas comuns – o filme foi filmado por uma câmera tremulante em um galpão. A intenção do diretor ao fazê-lo não foi (ao menos não a priori) cortar gastos, e sim enfatizar a história em prol da produção.



Depois de meia hora, eu já estava tão envolvida que só me lembrei desse detalhe em um ponto positivo: sem paredes, é quase irônico ver absurdos e amenidades lado a lado – uma agressão em uma casa, o jantar em outra. Me fez pensar: o quanto conhecemos nossos vizinhos? E nós mesmos?


20 comentários:

  1. A falta de cenário é a coisa que mais amo no filme, depois são as atuações incríveis. É um dos meus filmes favoritos, sem dúvida.
    Excelente crítica.

    Beijos,

    Carissa
    http://artearoundtheworld.blogspot.com

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    1. Obrigada, Carissa! A falta de cenário realmente o diferencia dos filmes do gênero...

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  2. Isabel, este é um dos melhores filmes que já vi, que mostra o ser-humano em suas mais verdadeiras - e, talvez por isso, piores facetas - como quando humilham Grace por acharem que ela lhes deve algo por a estarem protegendo. O fim é um tanto forte, mas não pude deixar de pensar que foi merecido.

    Não é um filme do qual todos gostem, mas eu recomendo assim mesmo. Eu preciso assistir Manderlay, mas ainda não o encontrei, e é uma pena que o final da trilogia ainda não tenha sido filmado...

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    1. Poxa, e li por aí que provavelmente nunca será :/ Von Trier disse em entrevistas que já se sentou para escreve-lo milhares de vezes, mas nunca era bom o suficiente, digno dos outros dois filmes...

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  3. Adorei, ainda não assisti mais vou procurar, adorei a ideia de ser sem cenário
    beijos

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  4. Você sempre indica filme que eu não conheço e nunca ouvi falar e sempre me deixa com vontade de assistir e Dogville não foi diferente, vou procurar o filme aqui.
    Beijos!

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  5. O diretor deste filme é simplesmente, sensacional! E filme de catarse sempre são maravilhosos!

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  6. O diretor deste filme é simplesmente, sensacional! E filmes de catarse sempre são maravilhososos!

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  7. Nunca ouvi falar nesse filme... O quesito dele ser de três horas desanima um pouco, mas pela sua resenha parece ser realmente bom, porém tem que escolher um dia com muita paciência para ver até o final.

    Beijos
    Flor, estou seguindo!
    Visita meu blog? http://livrosebatons.blogspot.com.br

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  8. Adorei a sua resenha, prendeu a minha atenção e como eu adoro um filme, com certeza vou ver esse bem rapidinho *-*
    Valeu pela dica
    Beijinhos
    Renata
    http://escutaessa.blogspot.com.br
    http://www.facebook.com/BlogEscutaEssa
    @blogescutaessa

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  9. Nossa.... que forte!
    Não vi esse filme, sequer ouvir falar, sabe de ano ele é???
    Vou procurar para ver, mesmo não sendo muito simpática com a Kidman, ela sempre suspira demais nos filmes, rs!
    Vou procurar. Essas produções que mostram os piores alcances do ser humano quando bem feitas são excelentes.

    Agora, apenas uma observação, se foi o filme mais longo que viu indico os antigos "Nasce uma Estrela" e o famoso "E o vento levou", rs!
    Fora as novas produções baseadas em sagas que sempre beiram as 3 horas, né?!?!?

    Acho que "Nasce um Estrela" ganha. É longo demais! Rs...

    Bel, você é da Bahia, né?!?!? Se tiver qualquer possibilidade de vir a Bienal este ano me fale, tô querendo reunir blogueiras por lá, pra gente trocar ideia e se conhecer...

    Beijos
    Pâmela Rodrigues
    Blog: Liste & Realize
    Página no Facebook

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    1. 2005, creio eu :) Pretendo ir para bienal sim! Seria uma ótima ideia um encontro :DD Só sugiro que seja no domingo: muita gente (tipo eu) trabalha ou estuda no sábado...

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  10. Oie Isabel!

    Esse filme parece ser bem forte mesmo. Eu sei bem como é essa sensação de quase chorar em um filme mas não conseguir derramar nenhuma lágrima, isso aconteceu comigo em Um Amor para Recordar ....

    Gostei da dica!

    bjus e um ótimo final de semana!;****
    anereis.
    mydearlibrary | bookreviews • music • culture
    @mydearlibrary

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  11. Ainda não conhecia o filme, fiquei curiosa. Parece ser realmente interessante. Vou tentar assistir.
    Beeeijos

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  12. Oi Isabel, muito legal sempre descobrir coisas extremamente diferentes por aqui - pelo menos para mim. Não sabia da existência desse filme, e achei super diferente esse negócio dos cenários e tudo o mais.
    Não tenho muito como assistir filmes tão longos, mas esse parece interessante.

    Beijos

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  13. Isabel, obrigado pelo link ;) Agora sim vou conseguir assistir.

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  14. Que saudade estava de suas resenhas. É incrível como você consegue descrever de forma objetiva todas as características do filme (do cenário (ou a falta dele) ao enredo e o comportamento dos personagens) e as sensações que este lhe provocou. Quando crescer, quero resenhar como você (= HSDHUHDSU. Adoro filmes sobre cidadelas norte-americanas, e confesso que gostaria de morar em um subúrbio estadonuidense só chegar se a política de boa vizinhança é tão distorcida e utópica como este gênero de filme apresenta. E tem a Kidman, que é, desde minha infância, uma de minhas atrizes favoritas. Lá vai mais para minha lista de obrigatórios...

    Beijos ;*

    Ps: Te marquei em um meme lá no blog (http://alacazaam.blogspot.com.br/2013/01/pegando-gosto-pela-leitura.html), caso se interesse de responder, não se esqueça de me mandar o link do seu post para que eu possa conferir suas respostas ;p

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    1. Aaah, obrigaada :) Nicole Kidman realmente merece estar na lista de favoritas: ela é fantástica, e em Dogville está melhor ainda...

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  15. Esse tipo de filme é o que não me chamaria atenção por aí, talvez pelo nome que não diz muita coisa (mas acaba dizendo tudo!). Adorei a resenha, a história parece ser muito bem construída! E apesar de ter 3 horas, parece que prende você.

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